Lençóis maranhenses: pé no chão e mochila nas costas

Trecho entre Baixa Grande e Queimada dos Britos no parque dos Lençóis

As pisadas não duram muito tempo nas dunas de areia fina e fofa dos Lençóis Maranhenses. O vento rapidamente se encarrega de não deixar rastro dos aventureiros que atravessam de ponta a ponta o parque nacional. São quatro dias de caminhada, com paradas para pernoite em pequenos povoados, verdadeiros oásis na imensidão de areia. A simplicidade é absoluta. A refeição, a R$ 35 por pessoa (setembro 2017), vem dali mesmo do quintal dos moradores: galinha caipira, peixe frito, macarrão, arroz e feijão. Para dormir, é só escolher uma das redes penduradas no redário.

A travessia dos Lençóis Maranhenses é mais do que superação física. É também uma viagem de conhecimento, de contato com um Brasil que muitos acreditam ter ficado no passado. Na exuberância dos oásis maranhenses famílias vivem sem energia elétrica, sem telefone, sem escola ou um simples posto de saúde.

Na falta do básico sobra hospitalidade. "Ô, bichinha! Deite aqui que vou pegar um copo de água", acode dona Loza uma turista esbaforida. Ela é proprietária de uma das casas que recebem os aventureiros. Depois de horas de caminhadas debaixo de sol, somos recebidos com comida na mesa, rede estendida e, se precisar, até remédio para as dores no corpo ou bolhas nos pés.

São cerca de 60 km de trekking, percorridos em quatro dias ora na beira do mar ora no sobe-e-desce das dunas. A melhor época para visitar os Lençóis é de junho a início de setembro, quando a temporada de chuva acabou e as lagoas que se formam nas dunas estão cheias. Eu fiz a travessia em setembro com mais seis pessoas. Ainda tive lagoas cheias, mas encontrei muitas já secas pelo caminho. Acho que meados de setembro é uma data limite para fazer o trekking desfrutando de banhos refrescantes todos os dias em lagoas de água cristalina.

Fiz a travessia no sentido Atins-Santo Amaro. Para essa época do ano é o mais recomendado porque se faz a caminhada com o vento, e a areia, claro, sobrando nas costas, e não direto no rosto. É indispensável a companhia de um guia já que não há sinalização nas dunas. É muito fácil se perder naquele deserto de areia.

Existe uma estrutura mínima nos locais de pernoite, com banheiro e ducha. As instalações podem ser mais ou menos confortáveis de acordo com a casa escolhida. O redário é coletivo e cada "hóspede" recebe um lençol para passar a noite. Alguns locais oferecem quarto com camas. O café da manhã com tapioca, manteiga, ovos mexidos e café está incluído na diária. Nesses pontos de apoio há água para abastecer o cantil e outras bebidas à venda, além de almoço e jantar. Segue agora relato do dia-a-dia da aventura.

1º dia - Barreirinhas até Canto do Atins
Trekking: cerca de 3 horas (6km)


Foz do Rio Preguiças

O dia começou embarcando em uma das voadeiras no porto de Barreirinhas. Nela percorre-se o Rio Preguiças até chegar à praia da Atins. Esse é um passeio turístico com paradas em três povoados: Vassouras, Caburé e Mandacaru, conhecidos como pequenos Lençóis. O primeiro resume-se a uma barraca de praia, loja de lembrancinhas e muitos macacos-pregos.


Macacos-pregos no povoado de Vassouras
 Também há uma lagoa para os ansiosos por um banho. Mas nada que se compare ao que está por vir.

Lagoa aos fundos da barraca de praia em Vassouras

Já Caburé é uma longa faixa de areia banhada de um lado pelo rio e do outro pelo mar. Há alguns restaurantes de praia, então pode ser uma opção de parada para o almoço.

Farol da Marinha no vilarejo de Mandacaru
Mandacaru é a mais interessante porque é onde fica o farol que permite uma visão de 360º da região. A subida é gratuita. Pelo caminho há diversos cajueiros. Se tiver sorte, pode encontrar alguns cajus e se deliciar.

Visual do topo do farol de Mandacaru com rio Preguiças e o mar

Cajus colhidos no jardim do farol de Mandacaru

Até chegar em Atins foram cerca de duas horas. Saltamos do barco quase 15 horas e iniciamos uma caminhada de 6 km até Canto do Atins para o primeiro pernoite. Esse trajeto é feito em cerca de duas e horas e meia. Não tem nada de muito especial. Caminha-se um trecho pela areia da praia, muito procurada para a prática do kitesurfe, e depois numa estrada de terra, dividindo o caminho com motos e quadriciclos. Para quem não quiser fazer essa pernada há opção de pegar um 4x4 no desembarque dos barcos. A viagem leva cerca de 30 minutos até o Canto do Atins e o valor é por pessoa.

Chegamos no ponto de pernoite pouco antes do pôr-do-sol, visto de uma duna ali perto. A região é famosa pelos camarões, então, o jantar foi no restaurante da Luzia, um dos mais antigos. Já li alguns relatos com reclamações sobre a comida e o serviço, mas minha experiência foi ótima. O camarão estava delicioso e o atendimento foi atencioso e cordial.

Redário do primeiro pernoite na pousada do Antônio
Foi minha primeira experiência dormindo em rede. Depois das 22 horas as luzes se apagaram, sinal de que era hora de cair no sono. Afinal, o trekking do dia seguinte começaria às 3 horas. Nesta noite percebi que as redes ficavam muito próximas umas das outras, o que acabou sendo um inconveniente porque, quando a pessoa do lado se mexia, esbarrava na minha rede e eu, ainda em adaptação, acordava. Mas, no geral, foi bem tranquilo. Imaginei que acordaria com dores pelo corpo, o que não aconteceu.


2º dia - Canto do Atins até Baixa Grande
Trekking: 8 a 9 horas (24 km)

É considerado o dia mais desafiador da travessia por ser o mais longo. São cerca de 24 quilômetros superados em cerca de oito horas. É nesse dia que entraremos no Parque Nacional do Lençóis Maranhenses, os Grandes Lençóis. O despertador tocou às 2 horas. Pão caseiro, manteiga, café e bananas foram deixados numa cesta para o café da manhã. Com uma lua quase cheia que dispensou o uso das lanternas em vários trechos, pusemos o pé na estrada às 3 horas. A noite estava quente e foi uma sensação de liberdade diferente caminhar à noite na beira do mar. Nesse dia metade do percurso foi feito pela praia.


Trecho à beira-mar entre Canto do Atins e Baixa Grande


Essa palhoça marca o fim da caminhada na beira do mar e o início do trekking nas dunas, entrando no parque nacional. Eram 6h30 quando fizemos uma parada para descanso. Nessa hora o tempo fechou e veio a chuva. Tivemos que ficar na choupana mais do que o programado.

Caminhar nas dunas é desafiador. De longe parece um terreno homogêneo, mas não é. Tem trechos em que a areia é mais compacta, portanto, mais fácil para andar. Em outros você afunda quase todo o pé na areia fofa. Também tem pelo caminho areia movediça, onde basta uma pisada para atolar até o joelho.

Eu fui contra todas as recomendações e encarei os Lençóis com minha bota para trekking (Salomon, XA3DUltra2). Todos aconselham que se faça a caminhada descalço ou de sandálias tipo papete. Mas, depois de ver a situação de muitos companheiros que seguiram os conselhos e sofreram com bolhas e dores, eu agradeci por ter levado minhas "botinas". O inconveniente de caminhar nas dunas com tênis é que tem que tirá-lo de vez em quando para jogar fora a areia de dentro ou para atravessar algumas lagoas. Importante: não vai se aventurar a caminhar com qualquer calçado. Ele tem que ser confortável, com boa ventilação, leve e, principalmente, que já tenha sido usado. NUNCA inaugure um sapato numa trilha. Nem que seja uma simples papete.

Minha companheira de aventuras


As primeiras lagoas no parque já dão o ar da graça nesse dia numa variação encantadora de cores e formas. Elas são formadas por água da chuva e, a depender do índice pluviométrico de cada ano, podem estar mais ou menos cheias. O motivo de acordar tão cedo para começar o trekking é evitar caminhar sob o sol forte. Depois das 10 horas o calor começa a incomodar. Foi a hora de fazer uma parada para um banho.


Lagoas formadas de água da chuva no parque dos Lençóis Maranhenses

Por causa da chuva, nos atrasamos um pouco e, quando avistamos o vilarejo de Baixa Grande já estava perto do meio-dia. O povoado surge como um oásis encravado nas dunas. Incrível imaginar que toda aquela vegetação nasce de um solo que é basicamente areia.

Baixa Grande

Baixa Grande foi construída às margens de um rio, um convite irrecusável para um banho após o almoço. Ficamos no redário da dona Loza, o melhor de toda a travessia. Ele fica em um cômodo que já foi a única escola do vilarejo, desativada há alguns anos. Dona Loza é professora e agora usa o espaço para receber os turistas.

Com o sol a pino, a caminhada dentro do oásis foi desgastante. A areia queimava os pés descalços e o vento a que estávamos acostumados nas dunas não soprava em meio à vegetação, formada em sua maioria por cajueiros. Em setembro ainda restavam alguns cajus nas árvores e foram eles que tornaram os últimos minutos de caminhada menos penoso.

Redário do segundo pernoite
Baixa Grande tem o por-do-sol mais especial da travessia. Ele é contemplado de uma duna que proporciona vista aberta de toda a região. É imperdível!


Por do sol na duna em Baixa Grande


Toda a exuberância de Baixa Grande da partir da duna do por-do-sol

A mulherada do trekking na cozinha de dona Loza após o jantar





Despedida da pousada da dona Loza (na janela à esquerda) para iniciar o terceiro dia de caminhada


3º dia - Baixa Grande até Queimada dos Britos
Trekking: 4 horas (12 km)

Pode-se dizer que este é o dia mais fácil do trekking. A caminhada é curta, cerca de 12 quilômetros cumpridos em quatro horas. É quando a gente encontra, de fato, aquelas cenas das fotos dos Lençóis: dunas imensas de areia branca e fofa que parecem não ter fim e lagoas que surgem do nada na travessia. Não dá pra parar de fotografar. Por ser uma dia de pouca dificuldade, acordamos mais tarde, às 7 horas, e tomamos café com calma. O destino era o povoado de Queimada dos Britos.


Logo de saída, tivemos que encarar a travessia de um rio. Esse foi um dia, aliás, que tivemos muitas travessias de água. Mas não foi preciso nadar, o máximo foi água no nível da cintura.




Lagoa seca expõe jardim de árvores mortas


Troncos secos onde um dia já teve vegetação nos Lençóis


Rio de "cola-cola" entre Baixa Grande e Queimada dos Britos

Queimada dos Britos pode ser avistada de longe nas dunas. Assim como em Baixa Grande somente vivem por lá famílias que já habitavam a região antes do parque ser criado. Me surpreendi com o tamanho desses oásis. Na verdade, são áreas de restinga. Lá também tem um rio que serpenteia por todo o povoado e garante banhos refrescantes. O melhor por-do-sol é numa duna na entrada do vilarejo, de frente para uma lagoa. 



O redário desta noite foi na casa da dona Joana. Chegamos lá por volta das 11h30. Tem uma lagoa aos fundos do terreno e, então, decidimos esperar o almoço dando um mergulho. O resto do dia foi na rede, lendo um livro...


Redário em Queimada dos Britos


Almoço em Queimada dos Britos com dona Joana (à direita), a dona da 'pensão'


4º dia - Queimada dos Britos até Santo Amaro
Trekking: 8 horas (cerca de 20 km)

Foi mais uma vez dia de levantar cedo da rede, por volta das 2h, para o último dia da travessia. O banho de lagoa seria para brindar o final do trekking já em Santo Amaro. Para que pudéssemos aproveitar bem a despedida, deixamos diversas lagoas pelo caminho. Nesse trecho o visual é bastante parecido ao do dia anterior. 

Lagoa no trecho entre Queimada dos Britos e Santo Amaro
No trajeto encontramos uma das sondas da Petrobras que décadas atrás perfurou os Lençois à procura de petróleo. Ainda bem não encontraram reservas substanciosas no local e, com a transformação da área em parque nacional, não corremos mais o risco desse paraíso ser destruído. 

Parada para um lanche onde antiga sonda da Petrobras virou "monumento"
O acúmulo do cansaço dos dias anteriores e a longa caminhada fazem do último dia um desafio. Confesso que cheguei exausta ao ponto final do trekking. Eram 10h30 quando avistamos a Lagoa das Andorinhas. A praia no entorno estava bastante ocupada por guarda-sóis, cadeiras e cangas. Tirar a mochila das costas, o tênis e cair na água foi a melhor recompensa que podia esperar.

De joelhos e exaustas na chegada à Lagoa das Andorinhas
  
A galera se despedindo dos Lençóis

Nesta lagoa, há diversas Toyotas que levam e trazem turistas de Santo Amaro. A viagem até a cidade de Santo Amaro levou cerca de meia hora. Lá fizemos um almoço e partimos rumo a Barreirinhas para pegar nosso transporte de volta a São Luís. Valeu cada minuto de sofrimento e de prazer! Aqui meus agradecimentos aos bravos companheiros de expedição.

Reinaldo e Ana

Fernanda

Ricardo

Rose

Wemerson

Sobrevôo nos Lençóis

Para fechar com chave de ouro fizemos um sobrevôo a partir de Barreirinhas pelos Lençois. O passeio dura 30 minutos e é a bordo de um avião para seis pessoas. A empresa AVA é a responsável pelo serviço. 




Como chegar aos Lençóis

Barreirinhas é a porta de entrada para os Lençóis Maranhenses. Ela fica a 248 quilômetros da capital São Luís, cerca de quatro horas de viagem. O trajeto pode ser feito por vans e microônibus fretados para turistas ou ônibus regular. Agências oferecem o transfer por cerca de R$ 50 a R$ 60 por pessoa. A vantagem do transfer é que eles te pegam e deixam no local em que estiver hospedado. Uma das empresas que prestam o serviço são a Levatur e Giconect. Já se quiser ir de ônibus tem que se deslocar até a rodoviária de São Luís e comprar a passagem em uma das empresas que viajam até Barreirinhas, como a Cisne Branco. Há saída às 6h, 8h45, 14h e 19h30. Táxis também fazem a viagem mas o preço é bem mais salgado, cerca de R$ 500.


O que levar para a travessia


  • Mochila – (lembre-se de não exagerar porque terá que carregá-la por horas sob o sol)
  • Lanterna de cabeça com pilhas (para o trekking ainda à noite)
  • Compartimento para água- Garrafa/Cantil/Camelbak (mínimo de 02 litro)
  • Bota/Tênis de caminhada ou papete
  • Camisas tipo Dry Fit (ideal manda longa se possível com proteção UV)
  • Fleece/Anorak/Corta Vento
  • Repelente de insetos
  • Protetor solar e labial
  • Bermudas
  • Toalha
  • Shampoo
  • Sabonete
  • Chinelo
  • Meias
  • Esparadrapo
  • Atadura (caso tenha bolhas no pé)
  • Bastão de caminhada (se estiver acostumada a caminhar com eles)
  • Chapéu ou Boné
  • Medicamentos de uso pessoal
  • Lanche para a trilha (frutas secas, paçoca, barra de cereal, castanhas/nozes, biscoitos)
Como contratar um guia

Não é possível fazer a travessia sem um guia. O risco de se perder é alto porque não há caminho sinalizado. Você pode contratar uma agência que organiza a trekking ou contratar diretamente em Barreirinhas um guia. Recomendo que faça isso com antecedência. Sugestão o guia Fabrício (https://www.facebook.com/fabricio.ferreira.5070).

Leia também...
Expedição ao Monte Roraima
Trilha inca até Machu Picchu

Comentários

  1. Olá Silvia! Adorei o seu relato! Deu uma vontade enorme de fazer essa caminhada. Você foi sozinha e lá se juntou ao grupo do guia? O trekking é muito pesado? Bem, vou me programar para o próximo ano. Abraços, Sofia

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    Respostas
    1. Oi, Sofia. Eu acertei a travessia por uma agência e me inclui num grupo. Se vc tiver tempo, pode ir pra Barreirinhas e fechar lá com um guia. Ou acertar à distância. Eu deixei no post o contato de um guia que conheci lá. É comum fazee a travessia sozinha acompanhada do guia. Encontrei muita gente fazendo isso. Quanto ao trekking, é sim bastante desgastante. Eu ja fiz algumas trilhas pesadas como Monte Roraima e Machi Picchu e achei a dos Lençóis a mais difícil. Mas nada que uma preparação anterior não resolva. Boa aventura!!

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  2. Oi Silvia... Adorei seu relato, com certeza esta travessia está em meus planos, estou me organizando para em breve realizar esta aventura.

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